Descrição de chapéu Chuvas no Sul

Pessoas que perderam suas casas na chuva do RS relatam como é viver quase um mês em abrigos

Tragédia completa 30 dias nesta quarta (29); desabrigados elogiam atendimento nos locais, mas sentem falta da privacidade

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Porto Alegre

Quase um mês após o alerta climático que marcou o início da pior tragédia climática da história do Rio Grande do Sul, cinco residentes de abrigos em Porto Alegre relatam o dia-a-dia em meio ao caos de uma metrópole alagada.

Vivendo desde o dia 4 de maio nas dependências do Grêmio Náutico União e do parque esportivo da PUCRS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul), eles são uma pequena parte do contingente de mais de 13 mil pessoas desabrigadas na cidade.

Ao todo, a capital gaúcha tem 149 abrigos em funcionamento atualmente.

Os entrevistados pela reportagem dizem se sentir bem atendidos, com acesso a três refeições diárias, atendimento médico, donativos de roupas e o cuidado de voluntários, médicos e outros profissionais engajados na assistência aos desabrigados. Ainda assim, os horários restritivos, banheiros coletivos e a falta de privacidade são lembranças constantes de que esses lugares não são seus lares.

Em comum, compartilham o desejo de voltar para suas casas, para retomar suas vidas ou ao menos ver de perto o tamanho do estrago. Além disso, todos têm a esperança em um recomeço, e a angústia com a incerteza de datas para que isso aconteça.

'Tem os gritos das crianças de madrugada, mas se eu tomo remédio eu durmo'

Maria José da Silva, 63, aposentada

Maria José da Silva, moradora da zona norte de Porto Alegre, segura a bolsa que conseguiu salvar com poucos pertences dentro - Carlos Macedo/Folhapress

Minhas coisas em casa são todas altas, porque com qualquer chuvinha já enchia, ficava água no pé. Alagou quando teve a enchente ano passado mas pouco, até metade da canela. Não sei bem quanto entrou agora, mas foi até o telhado. Minha neta saiu com um saco de lixo com as roupas dela. Eu saí sem nada, só com os cachorros, meus documentos e minha bolsa. Só isso.

Aqui eu me levanto 6h, vou tomar meu banho e já venho me deitar. Às vezes mexo no celular, não sou muito viciada, mas mexo. Fico deitada, vendo as notícias. Não tem muito o que fazer. De noite, eu tomo medicação para dormir. Tem os gritos das crianças de madrugada, mas se eu tomo remédio eu durmo, não vejo mais nada.

Eu me lembro de uma enchente que teve no mesmo lugar que moro, quando eu era pequena. Nós saímos de dentro de casa e ficamos numa esquina esperando socorro. [De lá para cá] O bairro cresceu muito, por causa da Arena do Grêmio, que é bem próxima. E esse é meu medo, que agora eles queiram que a gente saia de lá para usar os terrenos. A gente escuta falar, eles não querem mais "maloca" perto da vila. A gente fica pensando, será que vai dar para voltar para casa? Porque corremos o risco de não poder voltar mais, e aí como é que vai ser mudar de lugar, mudar de história?

Eu não sei o que vai ser de nós. Querem colocar contêiner no Porto Seco para levar as pessoas para lá. Já pensou em morar em contêiner, com cozinha comunitária, banheiro comunitário? Não tem como não ficar angustiado, sem certeza de nada.

'É difícil sair de um país, largar tudo e começar do zero'

Javier Baez Velasquez, 31, jardineiro

O venezuelano Javier Baez Velasquez e sua família em abrigo de Porto Alegre - Carlos Macedo/Folhapress

A gente chegou em Pacaraima (RR) e moramos um ano e pouco na rua. Fomos indo, fazendo bicos, e aí conseguimos ir para um abrigo para indígenas onde moramos nove meses. Em 2019 a gente tomou a decisão de ir a Porto Alegre, porque aqui eu tinha parentes aqui. Chegar aqui foi difícil.

Já estamos há cinco anos no Sarandi, a gente morava de aluguel, mas tinha tudo. Geladeira, fogão, TV... A gente estava cômodo, ia conquistando, trabalhando, ganhando dinheiro, mandando para minha mãe na Venezuela. É difícil sair de um país, largar tudo e começar do zero. E eu acho que a gente vai começar do zero de novo.

Bem, bem, a gente não está, porque a gente gostaria de estar em casa, onde tem a nossa privacidade, mas para mim está bom. A gente já morou na rua, e não dormia em colchão. Na rua é mais difícil: faz comida na rua, toma banho na rua, lava roupa na rua. A gente tem café da manhã, tem almoço, tem janta. O pessoal aqui nos dá bolachinha, bala, coisas para as crianças. Eu não vou reclamar.

Minha mulher está trabalhando, mas não estou conseguindo porque meu serviço é em Gravataí. Quando ela não está, procuro fazer qualquer coisa. Eu arrumo o espaço aqui, ofereço ajuda para carregar uma caixa, sempre tem algo para fazer.

Eu penso que a gente não deve chorar. Eu choro, entendeu? É normal, mas não adianta, porque não vai resolver nada. A gente saiu da Venezuela porque as pessoas estavam morrendo de fome, não haviam medicamentos, e eu penso que se Deus está me dando uma segunda oportunidade, tem que ter a mente positiva.

'A criança pobre, que nasce na favela, já sabe como é que é'

Franciane Barbosa Ferreira, 37, auxiliar de serviços gerais

Franciane Barbosa, moradora do Sarandi, com seu filho Enzo, 9, está com quase toda a família no ginásio da PUC-RS - Carlos Macedo/Folhapress

A gente deitou às 22h e pouco. A minha cama estava na sala, do lado é a cozinha, 4h eu acordei com fome. Botei a mão por cima do balcão, peguei uma marmita e comecei a comer em cima da cama. Quando eu mordi, tinha uma beterraba que tava dura. Eu joguei ela para cair na pia, mas caiu no chão e fez "ploc", aí eu me assustei. Quando liguei a luz, estava tomado de água dentro de casa.

O atendimento aqui é muito bom. Os voluntários, o pessoal da limpeza e os médicos estão cuidando de todo o pessoal. Já passei até por psicólogo, porque tem dias que me levanto e estou com pânico.

A água lá na minha casa tapou tudo. Tudo o que eu tenho foram os voluntários que deram aqui para a PUCRS, umas cobertas, umas roupas e os colchões para dormir, é só o que eu tenho. E os filhos.

A criança pobre, que nasce na favela, já sabe como é que é. A enchente alagou a nossa casa, não tem como voltar. Eles já entendem que quem mora na periferia, negro, é sofrido. Todo dia tem que se levantar e ver uma batalha diferente. É preconceito, racismo, desigualdade de ser mulher... Eu tento passar o melhor possível para os meus filhos. O Enzo é criança, sabe que estamos aqui para se proteger da água e daqui a pouquinho a gente vai voltar. O mais velho já é ciente que vai ter que começar tudo de novo.

Só quero que baixe essa água para voltar para minha vida normal. Aqui é como um convento, tem horário para entrar, horário para dormir, tem 250 pessoas aqui dentro usando os mesmos banheiros. O atendimento é ótimo, a gente também tá se ajudando, mas cada um quer voltar para sua casa. Eu já não tinha muita coisa, e o que tinha eu perdi. Mas eu não perdi a fé no meu pai Ogum nunca, e tenho certeza que eu e a minha família vamos se erguer de novo.

'Embora eu tenha perdido tudo que eu tinha, eu não estou na rua'

Vinícios Delazeri, 29, atleta de remo

O remador Vinícios Delazeri, na parte em que vive dentro de um abrigo em Porto Alegre - Carlos Macedo/Folhapress

Quando a água começou a chegar perto da minha rua, a gente começou a planejar onde iria. Como meus avós têm mais de 80 anos e eu tinha meus dois cachorros junto, solicitei resgate com um amigo do remo. Ele foi até lá em casa com um bote para tirar eles, e eu e meus pais viemos caminhando pela [avenida] Farrapos com água acima do meu joelho. Eu saí com a minha mochila e algumas roupas que tinha dentro. Outras roupas que tenho aqui vieram das doações, os tênis também.

Os primeiros 15 dias foram muito corridos. Eu levantava por volta de 6h, tomava café e ficava na parte de recepção de doações e expedição, às vezes ia até 22h. Chegaram vários caminhões, com 30, 40 mil litros de água, e esse trabalho foi todo braçal nosso, de pessoas do clube e voluntários. Nesse meio tempo os demais atletas do remo que estão junto conosco tem feito algumas missões de resgate ajudando os bombeiros lá no Gasômetro.

Estou conseguindo voltar a treinar agora um pouco, o que é muito importante. Nós temos um simulador de remo, e estamos fazendo corrida e musculação sempre que pode. Nosso trabalho é com o nosso corpo, se a gente não está apto para competir depois no futuro, a gente não tem nem porque ter emprego.

A região em que eu moro é vulnerável. Se eu não tivesse tomado esse caminho do esporte na minha vida, não estaria aqui em segurança com a minha família. Não sei onde estaríamos. É uma coisa que me pesa bastante, essa sensação que eu devo retribuir de alguma forma. Não me falta nada, eu tenho comida e tenho onde ficar. Tem muita gente que tem a situação pior. Embora eu tenha perdido tudo que eu tinha, eu não estou na rua e minha família está em segurança.

'Esse carinho e respeito, eu nunca vi'

Sandro Daniel Silva de Mattos, 42, autônomo

Abrigado na PUC-RS, Sandro Daniel Silva de Mattos diz que ambiente é de carinho e respeito - Carlos Macedo/Folhapress

Sábado de manhã cedo o vizinho gritou "corre, corre, corre, corre". O valão transbordou, aquela água com cheiro ruim estava dentro de casa. Quando chegamos aqui era de noite, me perguntaram se estava com fome, e eu disse que só queria tomar um banho e trocar minha roupa.

Aqui tem muita gente solidária me perguntando o que quero, se estou precisando de alguma coisa. Esse carinho e respeito, eu nunca vi em tantas pessoas que nunca se viram na vida. Se tivesse escolhido a dedo, acho que não teria dado tão certo.

Eu encontrei um primo meu que fazia dez anos que eu não via. Deus escreve certo por linhas tortas. Tem um vizinho meu, nós trabalhamos juntos, ele chegou à noite e eu reconheci ele pela voz. Ele está no colchão do meu lado.

Na segunda semana, fizemos uma homenagem para os voluntários, profissionais da saúde, pessoal da limpeza. Escrevi um texto, pedi a permissão da maioria sobre o que achavam, eles aprovaram, e pegamos o microfone. Teve uma salva de palmas para eles, foi muito emocionante, teve muito marmanjo chorando. Eu imaginei aqui de novo, caiu um cisco no meu olho. Foi a maneira que a gente encontrou de demonstrar gratidão.

A chuva nos entristece, mas a gente trabalha no nosso psicológico e está perseverando, porque a gente sabe que aqui estamos bem. Aprender a dar mais valor para o ser humano já está dando certo para mim. Deus botou um monte de anjos perto de mim, eu tinha perdido o celular e documentos, identidade e certidão, e estou fazendo tudo de novo aqui. Vamos recomeçar.

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